REALISMO FANTÁSTICO OU MÁGICO

"Erótica é a alma que se diverte, que se perdoa, que ri de si mesma e faz as pazes com sua história. Erótica é a alma que aceita a passagem do tempo com leveza e conserva o bom humor apesar dos vincos em torno dos olhos e o código de barras acima dos lábios."

Fragmentos do Texto “Erótica é a Alma” de Adelia Prado

O Beijo
a virgem
em pedaços
entrecruzados
a válvula da despedida
a submissa
o eco
yerma
o aplique de seda
o espasmo
REALISMO FANTÁSTICO OU MÁGICO

O REALISMO MÁGICO é uma corrente artística, pictórica e literária da metade do século XX.  A realidade é mostrada de forma mágica, fantástica e caracterizada de forma estranha ou mesmo como uma deformação poética e lírica. 

Na literatura, o romance “Cem Anos de Solidão” de Gabriel García Márquez, “Macunaíma” de Mário de Andrade, o trabalho de Mario Vargas Llosa, de Isabel Allende, Milan Kundera, Ítalo Calvino, Jorge Amado e outros.  Na pintura, Frida Kahlo, Marc Chagall, Giorgio Morandi, Arturo Rivera, Wesley Duke Lee em alguns trabalhos, e vários artistas. No cinema, “Asas do Desejo” de Wim Wenders, “Mary Poppins” de Robert Stevenson, “À meia noite levarei sua alma” de José Mojica Marins, “Amélie Poulin” de Jean-Pierre Jeunet, “O senhor dos anéis” de Peter Jackson, “O curioso caso de Benjamin Button” de David Fincher são exemplos desta linguagem.

Percebo agora aos 80 anos, que aos 30 na minha primeira exposição individual, ainda atordoada com as mudanças de comportamento, fui corajosa e furiosa. Era um dos primeiros gritos feministas. Não só o meu, eram os gritos de todas nós mulheres.

CONVERSA DE DOIS ARTISTAS

Wesley Duke Lee e Amarilis Lu
Apresentação da Exposição de Amarilis Lu – 1973 – São Paulo

W.: Ô Lu: tem algum tempo que eu estou observando você fazer esta serie de desenhos, e já algum tempo que venho desenvolvendo uma forma de leitura. 
Acho que a pintura, o desenho, todas estas manifestações são susceptíveis à leitura e perante o seu trabalho eu às vezes fico perplexo. Tem uma série de elementos que inclusive são muito sensíveis para mim, eu já usei pessoalmente alguns desses elementos, mas você usa de uma maneira tão inusitada, tão nova para mim, e às vezes extremamente chocante, que eu levo um certo tempo para conseguir olhar o seu trabalho sem minha carga, sem o meu part-pris. Não é isso? Por exemplo, ali nós temos um garfo espetando um seio, aquilo pra mim é chocante, a relação que eu tenho com o seio é diferente. A simbologia toda que você usa me chama muito a minha atenção pelo fato primeiro – pra mim é a coisa mais interessante – é de você ser uma mulher, que dizer uma colega, uma artista, e funcionando em um mundo do qual eu não tenho exatamente acesso e fico na posição de quando olhando que você me revele certas coisas. Então eu gostaria que começasse a me ajudar a interpretar os seus trabalhos. Eu sei também se você chegasse pra mim e dissesse interprete o seu trabalho, eu vou te dizer uma série de coisas, eu não sei se vou estar interpretando, mas eu vou te dizer uma série de elementos que me ajudaram a construir aquela imagem que eventualmente é o símbolo, uma expressão, não é isso?

Lu. Pois é. Eu não vou interpretar o meu trabalho porque isso eu não sei fazer, mas vou dizer uma série de coisas que talvez facilitem a leitura do meu trabalho. Então eu acho que a grande, fundamental diferença que leva você a ter dificuldades e choques em ver o meu trabalho é que você é um homem, eu sou uma mulher. Porque o problema feminino, sentimental e emocional, é fundamental dentro de nossa estrutura de hoje.
Evidentemente trata-se de uma visão muito particular, muito minha, que eu senti, vivi e que registrei em todas as mulheres que eu conheci. Então, apesar de ser uma visão muito particular, ela bate com uma série de mulheres que eu circulo, que eu frequento, com quem eu convivo, vivo e sei que existe. Como vocês sabem, para vocês homens o problema fundamental, a razão da vida de vocês é o trabalho; para nós, mulheres, a razão da vida da gente é sempre o problema sentimental, o problema do relacionamento entre homem e mulher. Mais que a gente tentasse escapar desse problema, mesmo com todas as grandes modificações de agora, eu não consegui, duvido que alguma mulher emancipada, livre, 1973, tenha uma visão menos emocional do que a minha.
Talvez exista, mas eu não conheço.
Quando comecei a fazer esses meus trabalhos, eu achei que deveria ser mais sensorial na forma, na imagem; sensorial no sentido de que, quando a pessoa visse, sentisse alguma coisa forte, ou não sentisse absolutamente nada. Mas, de qualquer maneira, que fosse mais um impacto de emoção, e não de parar e ficar olhando, perguntando “o que significa isso?”. Bom, então aconteceu o seguinte: depois que eu comecei a fazer psicanalise, eu comecei a entender a grande diferença entre a gente, entre homem e a mulher, que eu nunca tinha percebido antes.

W.: Quantos anos você tem?

Lu: Trinta. E eu comecei a descobrir esta diferença muito tarde, eu já era uma mulher de 26 anos: eu não conseguia imaginar um tipo de harmonia entre a gente, entre um homem e uma mulher, que seria muito razoável de existir. Eu cheguei à conclusão de que é difícil. Acho que a gente tem só momentos. E pela minha experiência, e pelas experiências de todas mulheres que me cercam e foram muitas, eu fiquei ligadíssima, interessadíssima em saber porque tanta frustração, porque as mulheres todas estavam sempre naquele estado de meio emburradas com a realidade de cada uma. Repare que meus trabalhos começam um pouco mais suave – sempre tem algum elemento dramático, um gancho, por exemplo – mas depois começa ficar com mais sangue, com rachaduras, com garfos, e a coisa começa a crescer - acho que raiva, sabe? Porque deve ter muita mulher feliz, mas eu não conheço nenhuma.

W.: Você está lidando com a frustração num nível estético muito alto, o que dá certa mágica. Eu não vivo esta frustração, mas estou vivendo uma coisa que você quer comunicar, sensação absoluta de quem olha os seus trabalhos. Como seria esta comunicação?
Porque é obvio que todos os seus trabalhos são uma espécie de grito. Concorda? Não é simplesmente um falar, não é um aviso, é um grito mesmo. Uma chamada de atenção para uma problemática. Eu concordo plenamente quando você diz que essa problemática é sua, enquanto você está falando, mas ela é geral como contexto.

Lu: Certo. É como se fosse uma denúncia. Porque então acontece o seguinte. Como o homem está dirigido em uma função de uma coisa objetiva, e fora dele, ou seja, de uma realização profissional, a mulher só pelo fato de ser mulher já é muito diferente, entende? A gente não cresce preocupada com o problema profissional e estamos ligadas nesse troço só há pouco tempo, e eu acho fundamental que isto tivesse sempre sido assim. A gente deveria ter como finalidade de vida o amor e o trabalho, o que é muito razoável, não tem nada de estranho. Só que, com os homens ficou o trabalho, com a mulher ficou o amor. As duas coisas exageradas de ambas as partes, por que vocês não cedem.

W.: Não seriam formas de defesa de ambos os grupos? Porque aí tanto o trabalho quanto o amor deixaram de ser trabalho e amor e passaram a ser outra coisa, não é?

Lu: a ser uma coisa desequilibrada, de ambas as partes. Se fosse só o trabalho, pelo seu valor real, não tinha nada uma coisa que ver com outra. Mas o amor de vocês virou o trabalho e nosso trabalho virou o amor. Então o buraco entre o homem e a mulher, com a tentativa de modificação de 1950 para cá, ficou maior, as diferenças ficaram mais definidas ainda, apesar de se lutar contra.
  A mulher começou a luta contra tudo e começou a ficar tudo mais confuso, porque no momento em que a mulher é infeliz no relacionamento afetivo e começa a trabalhar, não tem sentido nem uma coisa nem outra.

W.: Mas não é o seu caso, é? Você não começou a fazer estes trabalhos porque estava frustrada?

Lu: Não no meu caso. Eu faço estes trabalhos porque simplesmente isto me dá prazer, porque gosto muito. Eu passo muito tempo sem trabalhar, acho que carregando as baterias, mas tem um em que eu trabalho por prazer. Esta série, eu estava com uma vontade louca de desenhar e saiu naturalmente. Mas a coisa é o prazer. Ainda mais que eu tinha acabado de sair da fase do sacrifício.

W.: O que é a fase de sacrifício?

Lu: Eu fui educada dentro da religião católica, numa severidade incrível, estudei em colégio de freiras, etc. O sacrifício no cristianismo é uma gratificação. As pessoas que se sacrificam na terra merecem o reino dos céus. Então, para o catolicismo, o prazer na terra é pecado.

W.: Agora você está me ajudando a entender os seus desenhos, caramba...

Lu: Então nunca me voltei contra o sacrifício, eu achava que era muito natural as coisas desagradáveis me acontecerem. Por isso, a gente vê tanta passividade desse tipo de raciocínio, muito mais característico em nós, mulheres, porque mulher...

W.: Eu não vejo passividade nos seus desenhos.

Lu: Porque foi exatamente neles que eu dei a volta, quando achei que pelo menos nesse tema proibido, poderia fazer neles minha catarse, e não ter por exemplo complexo de culpa das coisas boas.

W.: A culpa é em relação a esse pecado?

Lu: Exato. Sabe que até hoje eu ainda tenho sobras disso, porque a gente, no fundo, carrega a vida inteira, não é?
Mas quando estou feliz, eu tenho tanto medo, que eu às vezes atrapalho minha felicidade de medo de ... como se eu não merecesse, como é que eu posso ser tão feliz? É absolutamente absurdo, louco, neurótico, que eu carreguei anos com a maior seriedade.

W.: Deixa te perguntar uma coisa. Quando você olha para seus quadros, a visão que você tem é de uma visão feliz, ou de uma visão sacrificada?

Lu: É uma visão sacrificada, porque, se eu cantasse o prazer, eu não estaria acusando o sacrifício, entende?

W.: Sabe que alguns dos seus desenhos continuam me impressionando justamente pelo fato de serem de uma mulher. E isso é novidade para mim, porque eu acho que a maioria das mulheres mantêm as expressões de suas emoções mais íntimas em segredo. Você tem alguma expectativa de como os seus trabalhos vão atingir o publico?

Lu: Eu tenho uma grande ansiedade com relação a isso, mas acho que eu desenvolvi uma defesa para as pessoas que não vão gostar. Para as pessoas que vão gostar, eu ainda não sei o que vou fazer. De qualquer maneira, esta série de desenhos esteve guardada comigo durante algum tempo, e agora sair de mim, está sendo um pouco violento. Acho ridículo ficar preocupada com isso, mas acontece que vou sentir falta desses desenhos.

W.: É a primeira vez que você expõe individualmente, não é? Me diga quais são as objeções que, na sua opinião, vão aparecer nas pessoas que não vão gostar do seu trabalho.

Lu: Primeiro, as pessoas que não gostam de formas eróticas, vão ficar irritadas; as pessoas que não gostam de formas agressivas vão ficar irritadas.

W.: Você considera suas imagens eróticas?

Lu: Eu não, mas as pessoas consideram.

W.: Eu também não considero suas imagens eróticas, elas usam símbolos sexuais básicos, e situações que poderiam ser eróticas; mas a problemática que você levanta é de insatisfação, de angústia, de uma situação não resolvida.  Você já deve ter mostrado esses desenhos para grupos de homens e de mulheres. Quais foram as reações?

Lu: Geralmente os homens gostam, mas não se manifestam muito. Com exceção de um amigo meu que ficou chocadíssimo, e disse que tinha perdido uma amiga, porque ele jamais poderia imaginar que eu pudesse fazer esse tipo de coisa. Já as mulheres, umas ficam excitadas, falam muito, dão risada, ficam agitadas na frente dos desenhos. Duas mulheres me abraçaram, uma chorou, e outra fez um comentário como se tivesse pena de mim, mas ela não tinha se identificado inteiramente: passou a mão na minha cabeça e disse que era uma pena eu ter vivido uma experiência tão traumática, como se fosse só minha.

W.: Ela não percebeu o quanto estava no meio.

Lu: Não percebeu, porque as pessoas que vem os trabalhos da gente em casa, é diferente de ver numa exposição.

W.: Em casa, tem a confusão da pessoa com o artista e vice versa.

Lu: Esta é minha primeira exposição individual, depois de - nos últimos cinco anos – eu ter ameaçado no mínimo umas 500 vezes... fiquei até com dificuldade na voz, o que significa que estou num estado de ansiedade muito grande, e minha voz foi afetada.

W.: Realmente, quando você está às vésperas de uma exposição, você fica em frangalhos, porque o que você tinha que pôr nos desenhos, você já pôs, o que resta é manter uma unidade e pedir café e água. E a primeira vez é sempre mais dramática, traumatizante, a gente não sabe o que vai acontecer, inclusive porque não se tem muita noção do que fez, não é isso? Mas eu olho os seus trabalhos e fico extremamente contente porque sinto que alguma coisa que avança, compreende? Talvez nós não possamos sentar e falar linearmente sobre os trabalhos, como não estamos conseguindo, mas que é uma tentativa, é. E o que conta nessa tentativa é o estreitamento da comunicação entre esses dois grupos que, na minha visão, ainda não conseguem viver juntos, que são os homens e as mulheres, se desejando violentamente um ao outro, e não conseguindo estabelecer uma ponte. Sua exposição, para mim, vem como forma de ponte, como forma de tentativa, e isso eu acho de uma extrema coragem, porque você vai comer fogo aí pela frente.

Lu: Você acha que eu vou comer fogo em que sentido?

W.: Inicialmente, acho que vai haver uma desinterpretação violenta. Alguns símbolos que você está usando são muito diretos, e eu acredito que o que o público vai pegar pelo lado da brincadeira, da troça da piada. O que é uma forma psicológica de compensar uma ansiedade muito forte. De qualquer maneira, você vai fazer sua exposição agora, mas pode esperar uns dois anos para saber o que ela significou. Uma quantidade de indivíduos vai ver essa exposição e não vão se comunicar imediatamente com você. Eu, pessoalmente, dou a você o meu voto de confiança.